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“¿Me estás cargando?”

Atualizado: 11 de nov. de 2020


Iassana Scariot


No espanhol argentino, a expressão “me está cargando?” significa, no nosso bom e velho português, “você tá de brincadeira comigo?”. Algo difícil de acreditar, não é mesmo? Porém, o verbo “cargar” também significa “carregar”, e, a partir deste “cargar” parece-me importante pensar que a carga mental feminina não é brincadeira, e, é fator de risco importante para pensar a saúde mental da mulher.


Recordo-me de no mínimo cinco mulheres do meu círculo mais próximo, as quais me inspiro para escrever estas linhas. A mulher realiza um trabalho de antecipar a necessidade do outro, seja de conforto, de escuta, de segurança ou de presença, essa atenção também a exige em níveis emocionais. Na infância, brinquedos como fogõezinhos e bonecas são oferecidos e pensados como brinquedos para meninas, o que faz a criança já ter uma ideia de que lugares ela deveria ocupar. E depois, na maternidade, pode passar isso para as filhas e não para os filhos, de forma inclusive inconsciente, ou seja, uma estratégia naturalizada e introjetada, um ciclo que necessita sofrer alterações imediatamente.


Seguindo a trama da brincadeira, do chiste, inúmeras vezes se pensa que não é para levar a sério uma pergunta, uma tarefa, é "só" uma louça, uma ida ao supermercado, a mala das crianças. Planejar, organizar e decidir as coisas da casa e da família são atividades assumidas principalmente por elas. Um trabalho invisível das mulheres que ninguém fala e que pode aumentar o estresse, o que leva a muitos conflitos e, sem dúvidas, afeta a saúde mental desse público.


As tarefas do lar e da família possuem um valor social, e a mulher exerce múltiplos papéis, expectativas e exigências. Vera Iaconelli, psicanalista, ressalta que é porque alguém faz esse trabalho, que outros podem desfrutar. E destaca que a mulher deve refletir sobre diminuir metas, impor limites, não imaginar que a casa estará perfeita, o trabalho perfeito, a criança impecável, parte do processo é pedir ajuda quando necessário.


Segundo uma pesquisa feita pelo IBGE (2018), as mulheres chegam a dedicar 21,3 horas semanais aos afazeres do lar sendo que os homens gastam apenas 10,9 horas nessas tarefas. Esse trabalho de gerenciar todas as atividades da casa, atendendo as demandas da família e do trabalho fora de casa, gera uma carga mental que prejudica a saúde psicológica, emocional e até física. A carga mental, gerada inclusive pela desigualdade de gênero, provoca muitas brigas e rompimentos no âmbito familiar.


É importante destacar que essa cultura de quem se ocupa dos afazeres da casa e dos cuidados da família é a mulher, e o “homem ajuda” foi sutilmente inserida em nós durante anos a fio. Reforçando esse discurso as mulheres acabam se colocando nessa posição de culpa, perfeição, exigências: “ele não sabe fazer, ele não sabe cuidar...”.


Então, a carga mental feminina está associada à saúde mental? Totalmente. A sobrecarga mental deve ser diferenciada do cansaço comum. O cansaço pode ser resolvido com uma boa noite de sono, enquanto, na sobrecarga, a mulher acaba se fixando somente nas atividades que precisa desempenhar, seja por força do hábito ou da necessidade, e não consegue descansar.


No atual momento em que estamos vivendo, devido à Pandemia do COVID-19, é esperado “gatilhos estressores” decorrentes desse período, no qual predominam dúvidas, incertezas, apreensões, medos, insegurança e dificuldades inerentes como a sobrecarga de trabalhos domésticos e de home office, dificuldades econômicas e nos cuidados dos filhos com várias atividades online não tendo a rede de apoio externa que foi suprimida com a pandemia, além de maiores riscos de violência de gênero. A psicanalista Maria Homem comenta que nós, mulheres, nos ocupamos dos filhos e da casa, sem deixar de cuidar do trabalho, onde, para ser reconhecida no mesmo degrau que os homens, você precisa produzir muito mais. “Assim como o negro e a negra fazem, considerando os recortes de classe, de raça e de gênero. Essas são as sobrecargas materiais, além da mental”.


A Organização de mídia Gênero e Número e a Sempreviva Organização Feminista (SOF) realizaram uma pesquisa de percepção com mais de 2.600 mulheres brasileiras. Os dados mostram que metade das mulheres brasileiras passaram a cuidar de alguém na pandemia, aumentando ainda mais as suas responsabilidades. A realidade não é a mesma para todas: 62% das mulheres que estão na área rural passaram a ter esse tipo de responsabilidade. As diferenças marcadas pela renda e pela raça também estão expostas. Entre as mulheres negras, o percentual é de 52%, enquanto, entre as mulheres brancas, ficou em 46%.


Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), as mulheres têm uma prevalência maior de ansiedade e depressão, consumindo mais antidepressivos e ansiolíticos que os homens. Quando essa carga mental chega ao extremo, é possível perceber sintomas como a falta de alegria, irritabilidade, cansaço, sono de má qualidade, dificuldade de concentração e de manter o foco, dores no corpo, dificuldade de descansar, crises de ansiedade, taquicardia, síndrome do pânico, entre outros sintomas. Lembre-se que a intensidade e frequência desses sinais podem levar a problemas físicos e mentais ainda mais graves.


Segundo Maria Homem, para sair dessa condição, em primeiro lugar é necessário identifica-la, ter consciência do que está sendo vivenciado, porque muitas vezes isso está naturalizado e introjetado. O segundo passo é interromper o processo, parar, e logo após, instaurar um novo processo: convidar o outro a vir com você para fazer diferente. Dessa forma, se dá uma dialética possível, transformadora. Isso tudo não precisa ser uma guerra dos sexos, ou seja, também é interessante para o homem ter acesso ao universo que antes era visto como exclusivo feminino, por exemplo, cuidar do bebê, brincar com o filho, cozinhar.


Estamos sempre comparando o nosso eu ao ideal de eu, e, assim, já há uma função ajuizadora dentro da gente. Somando esse processo ao capitalismo, sempre imaginamos que estamos aquém, em dívida. As mulheres não precisam dar conta de absolutamente tudo, podem e devem contar com a ajuda das outras pessoas - isso pode ser a prevenção de tudo o que gestamos nessas linhas. É de suma importância que as pessoas que convivem no mesmo lar sejam convidadas a compartilhar tudo isso, entendendo que cada um tem seus deveres, responsabilidades, assim como tem direito de usufruir do ambiente. E para completar e não “sobrecargar”, a nossa bateria física e psíquica o diálogo é fundamental.

Referências:


Entrevista de Maria Homem- UOL- Psicanalista compara lar a microempresa e defende remuneração para mulher. Disponível em: https://www.uol.com.br/universa/noticias/redacao/2020/09/08/psicanalista-compara-lar-a-microempresa-e-defende-remuneracao-para-mulher.htm


Entrevista de Vera Iaconelli – Revista Crescer- "A conta 'mulher, trabalho e filhos', simplesmente não fecha"- Disponível em: https://revistacrescer.globo.com/Familia/Rotina/noticia/2019/10/conta-mulher-trabalho-e-filhos-simplesmente-nao-fecha-afirma-psicanalista-vera-iaconelli.html

Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística -IBGE: https://www.ibge.gov.br/

Sempreativa Organização Feminista: https://www.sof.org.br/

Revista Gênero e Número: http://www.generonumero.media/







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