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Luto em tempos de Pandemia

Atualizado: 27 de out. de 2022


Tainã Rocha


Quando somos crianças aprendemos que os seres vivos nascem, crescem, se reproduzem e morrem. Aqui a vida é apresentada como uma linha reta, traçada ininterruptamente, numa constante que nos leva até o ponto sem retorno que é a morte. Apesar de se tratar de um fato com o qual todo ser humano terá que se haver em algum momento da existência, se observa uma tendência a negá-la, a viver como se fôssemos imortais. A morte, em nossa sociedade, é vista como uma invasora, e buscamos evitar esse encontro a todo custo.


Porém, quando menos esperamos, como que por um acaso, num sobressalto, nos vemos de frente com o fim. A morte se impõe. Esse encontro fortuito com o real, ou seja, com o impossível de simbolizar, nos fratura, nos divide. Por alguns instantes parece que perdemos as referências. Não há o registro da morte no psiquismo, ela é irrepresentável; por isso é tão difícil o trabalho do luto, porque exige a construção de um contorno simbólico a uma experiência impossível de simbolizar.


O ano de 2020 aproximou a experiência da morte à vida cotidiana. Diariamente vemos nos meios de comunicação informações acerca da pandemia de COVID-19, o número de infectados e de mortos. Se antes a morte era uma imagem opaca, agora aparece como uma ameaça constante, se tornando mais palpável, densa, pura presença. Isso gera angústia e exige um trabalho psíquico que tente conter o excesso que essa ameaça irrepresentável da morte produz.


Para muitas famílias essa ameaça se cumpriu. Enquanto escrevo essas linhas, temos mais de 120 mil mortos no Brasil vítimas do novo coronavirus. Não se trata de qualquer morte, pois a morte por covid-19 implica na impossibilidade de contato e despedida. E então surgem as perguntas: como tramitar a dor da perda quando os rituais que criamos para dar conta dessa experiência estão restringidos e trazem consigo a ameaça de contágio? Como passar pelo luto quando os protocolos de saúde impossibilitam a despedida?


A cerimônia fúnebre tem um papel importante, pois ajuda a assimilar a perda, a simbolizá-la e dar início ao trabalho do luto. Que efeitos a impossibilidade de velar nossos mortos pode produzir? Se pensarmos nos familiares de desaparecidos da ditadura e também de vítimas de naufrágios, é possível ver como o processo do luto é dificultado. A psicanalista Maria Rita Kehl fez essa comparação entre os familiares de desaparecidos políticos e familiares das vítimas de COVID-19 e traz como hipótese um luto infindável:


“Precisamos de todas as cerimônias fúnebres para acreditar que uma pessoa realmente não existe mais naquele corpo que vamos enterrar. Por isso, é infindável o luto das mães dos desaparecidos políticos. Como talvez seja infindável o luto das pessoas que viram um familiar ou um amigo ser levado ao hospital e depois... depois nada. A pessoa desapareceu porque seu corpo não pode ser velado” (Kehl, 2020).


No texto “Luto e Melancolia” (1917), Freud afirma que a primeira reação diante da morte de um ser querido é de choque e que ocorre uma relutância em aceitar essa perda. É como se não pudéssemos acreditar no que aconteceu. Embora na vida real se reconheça a perda do ente querido, no psiquismo é como se esse fato não fosse de todo assimilado. Com isso, sentimos um desinteresse pelo mundo externo, ou seja, por um tempo não conseguimos investir em outra coisa, só pensamos no ser perdido e sofremos essa ausência.


O trabalho do luto implica em integrar ao eu aquilo que foi perdido, quer dizer, aceitar a perda e fazê-la parte de nós. Para Dunker (2019) é preciso entender o que se perdeu no que foi perdido e qual o valor de afeto ligado a cada traço do que foi perdido. Parte de nós morre com o outro, porque aquele que morreu leva consigo aquilo que fomos para ele. Elaborar a perda de tudo o que significou essa relação irrepetível requer tempo, um tempo que não é cronológico, não é contabilizável.


No curso do luto se alternam momentos de dor profunda, raiva, tristeza, saudade… São sentimentos esperados e é preciso permitir-se experimentá-los. “Eu lembro, vou lembrando mais, eu vou fazendo aquela pessoa reexistir, eu vou recriando aquela pessoa e aí eu percebo que ela não está mais” (Dunker, 2019). Com o tempo a gente se percebe conjugando os verbos no passado ao falar dessa pessoa, tornamos presente sua ausência, evocamos sua memória e reconhecemos em nós traços desse outro, mantendo algo dele vivo em nós.


O trabalho do luto em tempos de pandemia vai exigir um esforço de invenção muito singular, e o uso da palavra como mediadora nesse processo vai ser de fundamental importância. E embora a dor seja solitária e o luto individual, contar com o acolhimento de pessoas queridas - mesmo através de encontros virtuais - ajuda a elaborar a perda. Podemos criar novas formas de despedidas, homenagens especiais, construir memórias narrando momentos vividos com a pessoa que se foi e utilizando o potencial da palavra para eternizar essas vivências. Com o tempo a dor vai se transformando em saudade, e a gente vai sendo capaz de seguir sem aquela pessoa, mas ao mesmo tempo levando-a dentro de nós. Como diz a autora Hannah Arendt: “Toda dor pode ser suportada, se sobre ela puder ser contada uma história”.


Referências


Dunker, C. (2019). Teoria do Luto em Psicanálise. Disponível em: https://revistapsicofae.fae.edu/psico/article/view/226


Freud, S. (1917). Luto e Melancolia. Rio de Janeiro: Imago.







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