Carta ao que te levou a analisar-se
- Diásphora Psi
- 8 de set.
- 3 min de leitura
Iassana Scariot
Boa noite,
Primeiro quero te contar que escrevi esta carta em 3 etapas. Primeiro na minha cabeça. Depois no papel. E depois veio uma correção apressada nos minutos finais que antecederam o envio.
Estou tentando dormir e você não me deixa, me faz lembrar de tudo o que tenho para fazer no dia seguinte. Para poder silenciar-te um pouco e poder retornar ao sono precisei levantar e escrever. Colocar no papel o primeiro esboço de uma tarefa pendente. Aqui a carta nasce, ganha um corpo.
No aniversário do Diásphora de 5 anos decidimos escrever cartas e se pensou em alguns destinatários. Ainda estou tentando descobrir por que te escolhi, o que você é, não se escolhe. Não sei como te chamar, teu nome muda a cada vez. Acho que demora muito tempo na análise para ter algumas pistas de qual é a sua verdadeira cara. Sei que você não é de mentira, é meio destrambelhado. Não faz por mal, mas, muitas vezes acaba me fazendo mal, é um trabalho danado aprender a lidar contigo.
Na infância, quando você me empurrou para análise o caminho sofreu um desvio, e a primeira parada foi a fonoaudiologia. Agora entendo que isso é mais comum do que a gente pensa. A criança passa por alguma situação traumática, deixa de falar, chora constantemente, foge ao “esperado”, e pimba, vai pra fono resolver a demanda manifesta. Claro, que a fono trabalhava em uma mesma clínica que a psico. Sorte a minha, azar o seu. Quando vivi uma perda muito importante, já estava amparada.
Na adolescência, fui muito comunicativa e buscava o olhar dos demais, a psicóloga da escola viu uma potência em você que eu não via e me recomendou seguir com a terapia. Quando tocava em um assunto delicado, você não se aguentava, desabava, misturava tudo, criava a maior confusão, não me permitia ver as coisas com clareza. Sei que o contexto que eu estava inserida, minha história de vida e os emaranhados familiares foram pratos cheios para você.
Com a faculdade de psicologia vieram também: outra cidade, outra rede de apoio, distância da família, momentos da vida com maiores responsabilidades, pontos chaves para seguir na análise e cuidar um pouco mais de você (e de mim). Com o tempo você foi exercendo o seu principal poder: a camuflagem. Como as mariposas quando precisam se proteger de predadores, utilizam dos caules de árvores, onde sua textura e cor se confundem com o ambiente.
Agora sei que você vai aparecer e se esconder de vez em quando. Não fico por aí contando para todo o mundo sobre você, mas confesso que minhas analistas te conheceram de pertinho, e minhas amigas psis com a escuta aguçada (e algumas sem “papas na língua”), também. Atualmente, com alguns anos de trajetória na psicanálise, como analista e analisante, percebo o quão importante foi para mim o apoio dessa rede. Há momentos que consigo te abraçar, outros que recorro à distância, ao silêncio, outros que fujo para o abraço de outras pessoas nos encontros. Também acontece de cair na gargalhada, isso mesmo, rir da sua cara (e da minha), isso me deixa viver com mais leveza e prazer. Dia após dia aprendo a conviver contigo, ser feliz apesar de você.
Já em paz, vou dormir.
Com carinho,
Iassana.

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