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O corpo como experiência subjetiva

Atualizado: 29 de abr. de 2022

Gicelma Barreto Nascimento


“Quero romper com meu corpo, quero enfrentá-lo, acusá-lo, por abolir minha essência, mas ele sequer me escuta e vai pelo rumo oposto”.

(Carlos Drummond de Andrade)



Realizar uma história sobre o corpo não se constitui como uma tarefa fácil, visto que são incontáveis os caminhos e numerosas maneiras de abordá-lo. São vários os olhares sobre o corpo, da medicina à arte, da antropologia à moda, existem sempre novas maneiras de conhecê-lo e diversas possibilidades de estranhá-lo. Em nossa cultura, que privilegia a imagem e o olhar, o corpo está em evidência, assim este se constitui como fonte de sofrimento, insatisfação e frustração.


Costumo escutar no consultório a manifestação de alguns sintomas corporais. Aqui, há um sofrimento desencadeado por questões emocionais, “é um embrulho no estômago”, são as dores de cabeça, são as crises de ansiedade, insônia, falta de apetite ou o comer sem controle. Também podemos incluir aqui a insatisfação corporal, um ideal de corpo perfeito que nunca alcança, sempre falta, por isso gera angústia e causa sofrimento.


O tratamento psicanalítico pretende tocar o corpo que é afetado por sintomas corporais através da palavra. Para Freud, o corpo não se confunde com o organismo biológico, campo de estudo das ciências médicas. Ao contrário, este se apresenta como um campo onde se desenrolam as relações complexas entre o psíquico e o somático, aqui o corpo é o personagem integrante no jogo dessa relação.


A psicanálise, diferentemente do que se pensa, começou com uma maneira de tratar os problemas do corpo, ela não se apresentava como uma técnica para tratar os problemas da “cabeça”. Assim, ela começou pelas certas disfunções corporais, cujo paradigma era os sintomas histéricos. Por meio da escuta das conversões sintomáticas das histéricas, Freud se afastou da medicina e iniciou a construção da psicanálise. Nas histéricas, a paralisia, a cegueira, a dor, a tosse não se originam da realidade biológica, mas são o material de uma narração visual, em que a imagem é erigida como testemunho de um sofrimento diferente do sofrimento de um corpo doente. Trata-se essencialmente, diz Freud, de um sofrimento psíquico.


Podemos tomar como características do corpo, a sua capacidade de interagir com o mundo e a partir daí produzir sentido. Através do corpo, o ser humano se insere em um espaço cultural e social, por meio de seu corpo ele produz sentido e integra a rede de sentidos do grupo social ao qual faz parte. O corpo não pode ser entendido somente a partir de uma visão biológica, visto que este é um conceito, uma forma de significar, um conjunto de percepções, valores e de sentidos. Nas palavras da psicanalista Fernandes, “o corpo psicanalítico obedece às leis do desejo inconsciente, constituindo um todo em funcionamento coerente com a história do sujeito”.


É neste sentido que o psicanalista Jairo Gerbase afirma que “o indivíduo é corpo”, assim, o corpo interessa ao psicanalista em sua singularidade, como um, como o que é contado e quando se trabalha o corpo também está tratando do sujeito. Nas palavras do autor, “Colocar corpo e sujeito em uma relação de equivalência, se não de homologia, tem a vantagem de deixar de lado a divisão corpo/mente. Corpo é equivalente a sujeito, e sujeito é homólogo a corpo”. Ao deixarmos de fora o corpo/sujeito que sofre, excluímos o corpo como um campo de experiência e emoção, visto que o sujeito é em si esta complexidade. Assim como temos um corpo orgânico, fisiológico, biológico, também carregamos nele uma história subjetiva.


Dessa forma, o corpo ao longo da experiência da vida produzirá inúmeras representações e sempre funcionará de acordo com as motivações inconscientes que decidem a causalidade dos acontecimentos que cada um poderá atribuir às experiências vividas. Estas escolhas determinarão o lugar que o corpo ocupará na vida do sujeito. A história dessas representações estará em constante modificação e permanecerá aberta para outras futuras. Por serem cambiáveis e, portanto permitir que aceitemos as novas e surpreendentes modificações, temos a sensação de permanência no mesmo corpo, pois somos obrigados a rever tais representações a cada experiência que nos afeta e refazê-las permanentemente.


Referências

ANDRADE, CARLOS DRUMMOND. As contradições do corpo. In: Corpo. Rio de Janeiro: 6ª ed. Record, 1985.

FERNANDES, M. H. Corpo. São Paulo. Casa do Psicólogo. 2008.

GERBASE, JAIRO. A hipótese lacaniana. Salvador: Associação Científica Campo Psicanalítico, 2011.

SORAYA CARVALHO (organizadora). O Inconsciente e o corpo do ser falante. Salvador: Associação Científica Campo psicanalítico, 2010.






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