Iassana Scariot entrevista a Dra. María Elisa Castiñeira Oubiña
Atualmente, a maioria das pessoas que buscam o Espaço Diásphora Psi são brasileiras e brasileiros que vivem no exterior. Neste caso, o acolhimento que oferece este espaço de escuta é também através da migração, um processo que pode trazer vários desafios. Muitas vezes essas pessoas chegam com diversos mal estar que são difíceis de suportar, e pedem por algo que as tranquilize de uma maneira rápida e eficaz. Imediatamente pensamos no tipo de uso que essas pessoas fazem das medicações, e , sempre as convidamos, pela via da palavra a se expressar, como uma aposta para aliviar esse padecer.
Como profissionais e parte desta sociedade, é importante que pensemos e que nos perguntemos sobre a utilização de diferentes medicamentos e diagnósticos, que podem ser vistos como únicos caminhos para cuidar da saúde mental. Isso pode levar para a automedicação e os sobrediagnósticos, o que, a nosso ver, exige um cuidado importante. Em nossa trajetória estamos interagindo com diversos profissionais, seja pela troca de atendimento a cada paciente, seja pela troca de experiências e teorias com colegas das áreas psis e educação, por exemplo. Pensando nisso, realizamos uma entrevista com a Dra. María Elisa Castiñeira Oubiña, que é psiquiatra aqui em Buenos Aires, e atende alguns pacientes migrantes.
Psi. Iassana- Olá Elisa, tudo bem? Para que o nosso público possa conhecê-lo um pouco, conte-nos um pouco sobre sua trajetória profissional.
Dra. Elisa - Olá, antes de mais muito obrigada pelo convite para este espaço de partilha de ideias. Sou médico especialista em Psiquiatria, realizei meus estudos na Argentina e na Espanha e atualmente trabalho na clínica para adolescentes, adultos e idosos e como criadora de conteúdo de divulgação em "Creando salud Mental", que é a nossa página na internet.
Psi. Iassana - A medicamentalização é um dos resultados da medicalização, não se resumindo ao campo da saúde mental. Isso porque, considera o uso de remédios, psicotrópicos ou não, como a única forma possível de cuidado (Brasil, 2019). Gostaríamos que a saúde mental estivesse em evidência, por isso te convidamos para essa entrevista. E a partir dela se faz imprescindível pensar os fenômenos da patologização e medicalização da vida enquanto processos históricos, sociais e políticos que estruturam as sociedades. O que você pensa sobre os diagnósticos da atualidade? Que já foi a depressão, e agora estamos em um período onde o TDAH está em evidencia.
Dra. Elisa - Sim, claramente a saúde mental nos atravessa e já sabemos há alguns anos sobre a tendência pandêmica de certos quadros. Já que estamos tão familiarizados com a palavra pandemia. A depressão lidera a posição número 1 em doenças incapacitantes.
No que diz respeito ao diagnóstico, costumo ser muito cautelosa na minha opinião, pois às vezes há uma necessidade extrema de "nomear" o que nos acontece e esquecemos que este conjunto de sintomas ocorre numa pessoa com todos os seus problemas sociais, económicos, laborais, acadêmica e cultural. Além do fato de que às vezes há diagnósticos que eu digo que "estão na moda" ou que mais se fala deles. Acho que o interessante da saúde mental é que a individualidade é a chave e isso possibilita humanizar os tratamentos. Sempre digo que nunca vi dois pacientes idênticos com a mesma depressão ou ansiedade, pois cada um expressa seu desconforto como pode, não há regras.
Psi. Iassana - A partir da sua trajetória atendendo pacientes aqui na Argentina (alguns sendo brasileiros), o que poderíamos pensar sobre as políticas públicas dirigidas a migrantes no campo da saúde mental nesses países latinoamericanos? Na sua opinião, como pensar o acolhimento e a escuta desses sujeitos migrantes?
Dra. Elisa- É um tema muito interessante que você está me perguntando, já que em vários países da América Latina a demanda por saúde mental supera os recursos disponíveis. E, para ser sincera, isso também acontece na Europa, onde conseguir uma consulta de saúde mental no atendimento público de emergência pode levar meses. Nesse sentido, valorizo muito o atendimento público na Argentina, que, mesmo com suas carências econômicas, permite a consulta de muitos pacientes que, sem dúvida, teriam dificuldade de acesso por motivos financeiros. E a pandemia também abriu nela uma “porta” onde hoje se recebem muitas consultas de pessoas de outras províncias que não Buenos Aires e até de outros países onde não há tantos recursos profissionais. Em tempos de movimentos migratórios tão intensos e conhecidos por todos, parece imperioso centrar a atenção no processo de luto que estes movimentos implicam e dar ênfase à prevenção e cuidados de saúde mental.
Psi. Iassana - Segundo pesquisa realizada pela IQVIA (empresa multinacional americana que presta serviços para as indústrias de tecnologia da informação em saúde e pesquisa clínica) está em quinto lugar entre os produtos mais vendidos, e no primeiro psicoativo, o alprazolam, parente do Valium sintetizado no final dos anos 1960 e aprovado pelo FDA dos Estados Unidos (Food and Drug Administration - Food and Drug Administration é uma agência federal do Departamento de Saúde e Serviços Humanos) em 1981 para tratar ansiedade e ataques de pânico. E na posição 6 aparece um ansiolítico um pouco mais "veterano", o clonazepam, que em 2014 se destacou como o mais vendido na Argentina.
A Argentina se destaca no consumo de ansiolíticos no mundo, o que você acha disso?
Dra. Elisa - Acho que o grande problema desses remédios é a automedicação. Eles são conhecidos por grande parte da população e às vezes são usados porque "um parente pegou e deu para mim", frase que se repete centenas de vezes no consultório médico.
E a verdade é que isso se torna um problema de saúde pública por vários motivos. Primeiro, porque se perde a individualidade do tratamento, a que nos referimos acima. Em segundo lugar, porque nem sempre é o tratamento indicado; trata a ansiedade a curto prazo mas não substitui medicamentos mais eficazes e menos psicoterapia. Em tempos de busca por soluções "mágicas", o sintoma desaparece em poucas horas. Mas da mesma forma que desaparece, volta. E terceiro e não menos importante é que são drogas seguras que usamos, mas mal usadas por desconhecimento podem se tornar um problema. Deve ser lembrado que o que funciona para um não funciona para outro; e por isso é tão importante consultar. Além de entender que a saúde mental tem uma abordagem interdisciplinar, onde a medicação é apenas uma das muitas ferramentas.
Psi. Iassana - A Organização Mundial da Saúde (OMS) adverte que o problema da automedicação é uma das potenciais fragilidades da saúde pública. Algo que também surgiu em nossa escuta é o autodiagnóstico ou o sobrediagnóstico. Como poderíamos abordar essas questões como profissionais de saúde?
Dra. Elisa - Sim, eu sempre comento que a internet permite acessar muito conhecimento, mas isso não significa, principalmente em saúde mental, que a informação seja confiável; nunca sabemos quem escreve do outro lado. Além disso, e se procurarmos por "insônia", por exemplo, num motor de busca, poderiam aparecer tantas opções de diagnóstico que não saberíamos qual escolher, pelo que mais do que informar, muitas vezes desinforma, gera medo e dificulta o acesso das pessoas à consulta. E a saúde mental é absolutamente baseada no sujeito, não é um conjunto de sinais e sintomas isolados. É um conjunto de sinais e sintomas que aparecem em um sujeito com seu contexto biográfico e que não é mensurado pela internet; por isso é um dos ramos da medicina que menos respeita algoritmos e protocolos.
Psi. Iassana - Estamos em 2023, o terceiro ano com a Pandemia do COVI-19, alguns apontam que já é um pós-pandemia. Vivemos uma crise global, foi algo novo para todos, e muito difícil lidar com situações como o isolamento preventivo e obrigatório, o luto de amigos e familiares, a incerteza do futuro. Gostaríamos de saber como foi para sua profissão lidar com essa situação e se você gostaria de compartilhar alguma experiência de sua clínica.
Dra. Elisa - Como você mencionou, essa epidemia trouxe à tona questões de saúde mental. Algumas novas que surgiram neste período, e outras que ficaram latentes e que a pandemia as "empurrou" para se manifestarem. Mas, sem dúvida, a procura aumentou muito, pois, como você bem mencionou, o processo de adaptação não poderia ser gradual e, de repente, nos vimos trancados, isolados, sem contato social, em muitos casos tendo que reeditar nossos trabalhos e em outros casos que tratavam do desemprego que crescia.
E adaptamo-nos como pudemos, mas com consequências nos nossos hábitos e comportamentos, bem como um sofrimento que ainda continua de forma significativa e permanente apesar da diminuição do contágio. E é que agora temos de nos reajustar a uma nova/velha realidade com a qual temos de lidar.
Dra. María Elisa Castiñeira Oubiña
Médica especialista em psiquiatria
M.N 152892
Instagram: @creandosaludmental
Mail: draelisacastineira@hotmail.com
Bibliografia:
BRASIL. Lei nº 10.216, de 06 de abril de 2001. Dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental, 2001. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10216.htm. Acesso em 06 de março de 2023.
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