Gicelma Barreto Nascimento
O que será que faz alguém escolher determinado analista? O que será que move esse analista a aceitar determinado paciente em análise? O que faz com que ambos queiram compartilhar essa travessia, muitas vezes sofrida e desconfortável?
Nesse escrito trago algumas das minhas reflexões acerca das relações transferenciais que se estabelecem quando pacientes negros, atravessados pela marca do racismo buscam uma psicóloga negra como uma condição para começar seu tratamento. A partir dessa busca, que fala mais do paciente que do analista, penso em como esse movimento é uma tentativa de sair do silenciamento e uma procura por uma escuta suposta cúmplice, já que do lado do paciente aparece uma identificação com a figura da analista, nesse espaço ele pode falar livremente dessas dores causados pelo racismo, mas não com qualquer um, com ela que por também ser negra sabe do que ele está falando.
Pensando nisso, pergunto-me a respeito da importância da demanda desses pacientes, relacionado com a suposição de que o profissional por ser negro e provavelmente por ter vivenciado algumas das formas de racismo poderá entender ou compreender suas vivencias. Também pergunto-me como essa relação pode ajudar no processo terapêutico e como a analista que também é negra deve conduzir as primeiras entrevistas, já que as marcas do racismo ditas nessa relação pode ser familiar a psicóloga que escuta.
Como afirma Isildinha Baptista Nogueira (2017): No limite, permanece o medo de romper a tênue linha da sensibilidade humana e me expor como personagem do meu drama pessoal, perdendo de vista a sensibilidade do analista que trabalha com sintomas que falam do paciente, mas também dele, que escuta (Nogueira, pg. 125).
Recordo um caso de uma amiga que uma vez me pediu indicação de psicóloga para iniciar seu tratamento. Em sua solicitação buscava uma psicóloga que fosse mulher e negra, contava que se sentiria mais à vontade para falar com uma profissional que tivesse essas características. No consultório também recebo alguns pacientes com essas demandas. Com isso, afirmo que no trabalho desse analista a sua própria cor importa e muito para aquele que busca, do nosso lado o que interessa é ouvir o sujeito que fala, que reivindica.
Ao meu ver, o que faz com que um paciente negro buque uma analista negra para falar sobre suas dores causadas pelo racismo tem a ver com a transferência, isso significa que no consultório com essa analista ele sente que pode falar sobre o racismo e como isso lhe afeta de uma maneira aberta, ou seja, livremente. Do lado da analista, aceitar esses pacientes em consultório tem a ver com uma aposta, a saber: dar lugar aqueles que trazem uma história carregada de muitos não-lugares, não-pertencimentos, objetificação. Nessa relação há apenas um sujeito, sujeito do inconsciente e o analista deve silenciar sobre sua pessoa e se oferecer como um lugar vazio, dessa forma esse amor de transferência acontece da seguinte maneira: aquele que em sua posição subjetiva e social ocupa um lugar de objeto poderá ocupar o lugar de sujeito.
Sabemos que o valor do dispositivo analítico pelo praticante de psicanálise não é somente técnico, também é ético, por isso é importante que o analista ateste com sua simples presença que o consultório é o local onde seu sofrimento pode ser transportado, bem como as perguntas desencadeadas por ele. E aqui falo especificamente do sofrimento causado pelas marcas do racismo, como afirma a psicanalista Isildinha (2017) em Cor e Inconsciente: como profissional (e particularmente, como negra), minha escuta sempre foi assim direcionada, até porque me parece que as estruturas de poder e dominação não são alheias às psicanálises praticadas nos consultórios.
É a partir dessa relação que o analista escuta, oferece seu corpo, seu silêncio e sua interpretação. Encontro-me com o saber não sabido do paciente, diante de minha ignorância. Na clínica ofereço uma escuta e um espaço para falar sobre essas dores singulares que se articulam com as experiências de ser-se negro, com tudo o que isso significa para esse sujeito. Acredito que minha função e meu desejo estão ligados a uma aposta na construção de um discurso próprio e, com ele, sair do silenciamento.
Para finalizar, trago a fala de Frantz Fanon (2008 pág. 191) em pele negra máscaras brancas: Eu, homem de cor, só quero uma coisa: Que jamais o instrumento domine o homem. Que cesse para sempre a servidão do homem pelo homem. Ou seja, de mim por um outro. Que me seja permitido descobrir e querer bem ao homem, onde quer que ele se encontre.
Referências
Fanon, F. (2008). Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA.
Nogueira, B. I. (2017). Cor e Inconsciente Em: Noemi Moritz Kon, Cristiane Curi Abud, Maria Lucia da Silva (Org.). O racismo e o negro no Brasil Questões para a psicanálise. (pp. 1-302). 1 edição. São Paulo: Perspectiva.
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